Jovem de 19 anos foi submetido a choques no peito, nos
genitais, na língua e teve um saco colocado na cabeça para não
respirar. “Vamos levar ele para a desova”, teria dito um dos homens.
Ismael começou a rezar. Comando admite culpa e afasta dois suspeitos.
Desde que foi liberado da delegacia, na madrugada de domingo, o servente
de pedreiro Ismael Ferreira da Conceição se limita a andar do quarto para a sala. O jovem de 19
anos, que tem um problema na perna esquerda, passou a caminhar com ainda mais
dificuldade. Ele se queixa de dores causadas por uma sessão de agressões e choques
que durou cerca de cinco horas.
Em um relato corroborado pela família, vizinhos e advogada, Ismael diz
ter sido seguidamente torturado por policiais militares – após supostamente ser
confundido com um assaltante – dois dias depois da ocupação de 12 comunidades
do Uberaba (PR), ocorrida na última quinta-feira, na capital. O caso foi
denunciado ontem pela Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná. O Comando da Polícia Militar
reconheceu o fato e informou que dois PMs foram afastados preventivamente.
Ismael conta que às 17 horas do último sábado recebeu um telefonema de
um amigo convidando-o para sair. Ele havia acabado de chegar em casa após o fim
da jornada de trabalho. De banho tomado, montou na bicicleta e foi em direção
ao ponto de encontro, na casa de um deles.
Após pedalar por algumas quadras, foi avistado por uma viatura da PM que
participa da Unidade do Paraná Seguro (UPS). Segundo ele, o veículo fez a volta
e bloqueou a passagem. “Passou por nós, azar o seu. Cadê a arma?”,
perguntou um dos policiais saindo da viatura. Ismael disse que não tinha
qualquer arma. Outro policial o derrubou da bicicleta e, com o servente no
chão, apertou-lhe a garganta. Outro deu um chute nas costelas e perguntou mais
uma vez sobre uma arma.
Ismael respondeu pedindo para que os policiais o acompanhassem até em
casa, onde poderia apresentar documentos. Foi então colocado no camburão.
Segundo ele, xingamentos racistas começaram a pipocar, e se tornaram a
forma-padrão de tratamento até o fim do cativeiro. O rapaz demonstrou
preocupação com a bicicleta, que permanecia tombada na rua. “Tua bike já era.
Tu tá preso”, comunicou um policial.
Dez minutos depois, a viatura chegou à casa de Ismael. A família do
jovem vive em Piraquara, no entanto ele mora com os patrões. Cinco anos atrás,
Ismael conheceu Cristiano, o filho cadeirante de Lairi Inez Campiol, 52 anos, e
Celso Luís Pereira, de 36 anos, proprietários de uma pequena empresa de
acabamentos em construção civil. Cristiano convidou Ismael para participar do
time de basquete em cadeira de rodas da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Quando os pais se mudaram para a região metropolitana, o que impossibilitaria a
rotina de treinamentos, os pais do amigo o acolheram. E lhe deram um emprego.
Segundo Lairi, os policiais entraram na casa e começaram a vasculhar os
cômodos, abrindo armários e jogando objetos no chão. Disseram que estavam
procurando armas. “Temos um flagrante. Ele confessou que fez um assalto e a
vítima já o reconheceu”, disse um PM. Enquanto isso, Ismael permanecia trancado
na viatura estacionada do outro lado da rua. Ninguém podia vê-lo. Celso
perguntou pelo funcionário. Os policiais foram até o camburão e retiraram o
rapaz. Levaram-no até o quintal, mas não deixaram ninguém tocá-lo ou conversar
com ele.
“Fui espancado, sufocado e levei
choques”, diz vítima
Após a busca no imóvel, que se revelou infrutífera, a patrulha foi
embora levando Ismael. Os donos da casa perguntaram o que seria feito do
garoto. Os policiais informaram que ele estava preso, mas não revelaram para
qual delegacia seria levado.
A dona de casa Lairi Inez Campiol, que dá abrigo a Ismael, mostra a casa
no Uberaba revirada depois da passagem da polícia.
No meio da confusão que se formou na rua, um vizinho passou para o casal o número de telefone de uma
advogada. “Nunca precisamos de um profissional da
área criminalística, então não sabíamos o que fazer”, lembra Lairi Inez
Campiol.
A advogada Raquel Farah, 46 anos, atendeu à ligação de Lairi enquanto se
preparava para atender a uma ocorrência no 8º Distrito Policial. Ao ouvir a
história, se comprometeu a tentar descobrir o paradeiro de Ismael.
O jovem,
entretanto, não foi levado a uma delegacia. A primeira parada foi em um
descampado. O servente diz ter identificado cinco
policiais, que se alternaram distribuindo chutes, socos e estrangulamento. “Se
você contar onde é a boca, a gente te solta”, teria dito um deles.
Após um tempo que o agredido é incapaz de estimar, foi mais uma vez
trancado no carro. Ele lembra que ficou um bom período na viatura parada,
dentro do porta-malas, como se os policiais tivessem retornado ao posto.
A próxima parada foi em uma construção pequena, com duas camas, três
armários e um computador. Ismael supõe que se trata de um posto policial. Ali,
segundo ele, voltou a ser agredido. Alguns rostos eram novos. Também foi
submetido a choques no peito, nos genitais e na língua. “Vamos levar ele para a
desova”, teria dito um dos homens. Ismael começou a rezar.
Na delegacia: “Eles desistiram de
você”
Eram 21 horas quando Ismael da Conceição foi levado algemado até o
Hospital Cajuru para tratar dos ferimentos. “Não diga que você está sentindo
dor”, ameaçou o homem que o escoltava. Às 22h30, foi finalmente entregue ao 8º
DP. A advogada Raquel Farah havia sido informada da chegada apenas 15 minutos
antes.
Na delegacia, os PMs apresentaram uma arma de brinquedo como pertencente
a Ismael. O que se seguiu, segundo a advogada, foi uma discussão entre
policiais civis e militares, ouvida ao longe também por Lairi Campiol e Celso,
que haviam acabado de chegar. Os agentes da delegacia apontavam a
inconsistência da prova.
A vítima do assalto chegou para fazer o reconhecimento. Ismael foi
colocado ao lado de dois outros detidos. Apesar de a roupa ser semelhante à do
autor do roubo (tênis branco, calça jeans e camisa xadrez), o biotipo não
batia. O assaltante era alto e magro, Ismael é mediano e troncudo.
A delegada de plantão o liberou às 4 horas da madrugada de domingo.
Ismael não conseguia andar sozinho e estava zonzo. Foi embora carregado. “Eles
simplesmente desistiram de você”, justificou um policial civil.
OAB afirma que caso arranha
credibilidade do programa UPS
Para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a tortura sofrida por Ismael
da Conceição tira a credibilidade da primeira Unidade do Paraná Seguro (UPS)
instalada no estado. “Esse episódio coloca em dúvida se esse programa, que era
necessário na cidade, terá condições de diminuir a violência nos bairros. Ainda
mais quando os acusados são policiais militares”, afirma a vice-presidente da
Comissão de Direitos Humanos da seção Paraná da OAB, Isabel Mendes.
De acordo com ela, a denúncia partiu dos próprios moradores do bairro,
que viram o jovem sendo levado pela polícia. “Acompanhamos o exame de corpo
delito no Instituto Médico Legal e foi confirmado que o rapaz foi torturado.
Ele apanhou e levou choques elétricos. Os policiais ainda colocaram um saco
plástico em sua cabeça para ele ficar sem respirar por algum tempo”, relata
Isabel.
A Comissão de Direitos Humanos da OAB comunicou oficialmente o fato
à Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (Seju) na manhã de ontem.
A secretária Maria Tereza Uille Gomes determinou que uma equipe da Seju
acompanhasse Isabel até o Uberaba. (DA)
Pânico e revolta
Ao longo das 36 horas seguintes, Ismael e Lairi não voltaram a sair para
a rua. A dona da casa não acredita que eles possam ser ameaçados novamente, mas
Ismael está em pânico. Sua conversa é calma, mas os olhos permanecem sempre
arregalados. Lairi entoa indignação. “A gente não pode aceitar isso. Senão vai
ter mais vítimas”, avalia.
Ela lembra que na quinta-feira, dia da ocupação, a família ficou feliz
ao ver a polícia no bairro. Imaginava que aquele seria o começo de um
prolongado período de tranquilidade. “Nos tornamos vítimas, quando deveríamos
estar recebendo proteção.” Na manhã de domingo, dois policiais da Unidade do
Paraná Seguro – que nada têm a ver com o ocorrido – visitaram cada uma das
casas da rua para perguntar aos moradores como eles avaliavam a atuação do
destacamento. Lairi discorreu longamente sobre o que se passou com seu
protegido. “Isso nós não estamos sabendo”, ponderou o patrulheiro.
Porta-voz da PM reconhece que houve
excesso
A Polícia Militar confirmou no fim da tarde de ontem que identificou
dois policiais suspeitos de ser os responsáveis pela tortura do servente de
pedreiro Ismael da Conceição no Uberaba. Segundo o major Antônio Zanata Neto,
porta-voz da PM, será instaurado um inquérito policial para apurar de fato o
que aconteceu. Se confirmada a culpa, os PMs envolvidos podem até ser expulsos
da corporação.
“Um oficial da Polícia Militar foi até o Instituo Médico Legal e acompanhou
o exame de corpo delito. Foi confirmado que houve tortura por parte da Polícia
Militar”, admitiu o major. Para acompanhar o inquérito será solicitado o
acompanhamento de um promotor público.
Gazeta do Povo
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